1. Introdução
A trajetória percorrida para a sistematização, construção e formulação do conceito de Tecnologia Assistiva – TA, embora seja bastante curta e recente, tem atravessado diferentes fases e etapas, num processo ainda em pleno desenvolvimento.
As diversas concepções, paradigmas e referenciais considerados para essa construção apresentam matizes e nuances variáveis ao longo do tempo, em diferentes países e continentes.
Uma reflexão sobre esse processo de desenvolvimento e construção do conceito de TA, em diferentes contextos, busquei introduzir no texto intitulado “A Tecnologia Assistiva: de que se trata”1 (GALVÃO FILHO, 2009a), e também na minha tese de doutoramento2 (GALVÃO FILHO, 2009b).
Entretanto, posteriormente a essas tentativas de reflexão, novas etapas e novos desafios foram surgindo no caminho, nas pesquisas e formulações nessa área, exigindo que se busque avançar e aprofundar essa reflexão.
No Brasil, de um período de quase desconhecimento total da população e das instituições nacionais sobre a existência, a relevância e os significados da TA no país, iniciou-se recentemente um novo período no qual a TA adquire uma nova dimensão, passando a estar presente em diferentes agendas e em diferentes setores da realidade nacional.
Novas políticas públicas têm sido geradas nessa área, como, por exemplo, as políticas de acessibilidade do Plano Viver Sem Limite, do Governo Federal, que priorizou a destinação de um montante de 7,6 bilhões de reais, a serem aplicados entre os anos de 2011 e 2014, em diferentes ações favorecedoras dos direitos das pessoas com deficiência, entre as quais se encontram projetos e programas importantes relacionados à TA.
Vivencia-se, portanto, um novo período de interesse crescente nessa área, em diferentes setores da sociedade brasileira, como nos setores empresarial, acadêmico, governamental, entre outros.
* 1 Disponível em: www.galvaofilho.net/assistiva.pdf
* 2 Disponível em: www.galvaofilho.net/tese.htm
Portanto, também no Brasil, a trajetória do processo de sistematização e formulação conceitual sobre a TA tem passado por diferentes fases.
Há poucos anos atrás ainda eram bastante acentuadas, e não estão totalmente superadas, a influência e as pressões decorrentes de uma concepção tradicional normalmente denominada na literatura como “modelo médico da deficiência” (BRASIL, 2008), o qual percebe e destaca apenas as questões referentes à saúde e às capacidades funcionais individuais da pessoa com deficiência, sem considerar as dimensões sociais e interdisciplinares dessa realidade.
Baseadas nessa concepção tradicional, as pressões, em diferentes contextos, eram para que a TA fosse definida e delimitada como relacionada somente aos recursos da área da saúde, ou necessariamente atreladas a uma prescrição médica. Para essa concepção, a TA se resumiria praticamente apenas a recursos como órteses, próteses e dispositivos para a locomoção, como as cadeiras de rodas.
Por outro lado, em função da grande quantidade de novos recursos que vão surgindo, principalmente devido ao avanço acelerado das novas tecnologias e também em função dos avanços conceituais presentes nas reflexões sobre os direitos das pessoas com deficiência e a necessidade da sua inclusão social, a partir dos quais é proposto o chamado “Modelo Social da Deficiência” (PALACIOS, 2008), vai se tornando cada vez mais evidente o caráter interdisciplinar da TA, em contraposição à concepção tradicional, preconizadora do “monopólio” da TA pela área da saúde.
Toda essa polêmica esteve presente em diferentes instâncias relacionadas aos direitos das pessoas com deficiência, inclusive nos debates e estudos desenvolvidos pelo Comitê de Ajudas Técnicas – CAT (CAT, 2007), um comitê instituído no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, por meio da Portaria 142 de 16 de novembro de 2006 (BRASIL, 2006), e por determinação expressa no Decreto 5296/2004 (BRASIL, 2004).
A partir dos estudos desenvolvidos por sua Comissão de Conceituação e Estudo de Normas, que pesquisou diversos outros trabalhos e formulações para o conceito de TA, utilizadas em diferentes países e continentes (GALVÃO FILHO et al., 2009), o CAT aprovou por unanimidade, no ano de 2007, a proposição da seguinte formulação para este conceito:
Com o aumento no número de editais e chamadas públicas de projetos, específicos para o incentivo à pesquisa, desenvolvimento, inovação, produção e comercialização da TA no país, políticas públicas importantes, com significativos investimentos de recursos econômicos na área, cresce também o risco da ocorrência de distorções e a necessidade de uma maior precisão conceitual que, ao mesmo tempo em que se apóie numa concepção e conceituação ampla e interdisciplinar de TA, igualmente distinga as fronteiras, percebendo e buscando identificar com crescente clareza também o que não é TA.
2. Interrogantes e polêmicas atuais
A evolução de todo esse processo relacionado à reflexão e o desenvolvimento da área de TA no país tem trazido consigo diversas polêmicas, na medida em que, com a concepção ampla de TA e os novos incentivos agora disponíveis na área, a tendência direcionou-se no sentido de que quase tudo passe a ser considerado como TA, bastando que esteja relacionado de alguma forma a pessoas com deficiência, mesmo tratando-se de realidades e recursos que já eram enquadrados anteriormente em outras áreas e em outros âmbitos.
Por exemplo, uma polêmica presente na atualidade refere-se às diferentes visões sobre a classificação ou não, como Tecnologia Assistiva, de todo equipamento médico e de reabilitação, utilizado pelos profissionais de saúde, no trabalho com pacientes com deficiência.
Como os aparelhos que equipam uma clínica ou uma sala de fisioterapia, por exemplo. A questão que tem sido levantada é a seguinte: poderiam esses equipamentos para tratamento e reabilitação ser considerados como recursos de TA?
Por um lado, argumenta-se que, como se trata de equipamentos que visam realizar um tratamento ou reabilitação para uma maior autonomia e qualidade de vida de pessoas com deficiência, então esses produtos deveriam ser considerados como TA.
Por outro lado, uma forma diferente de analisar essa questão percebe e identifica esses equipamentos como instrumentos de trabalho dos profissionais da saúde, da mesma forma que um bisturi para um cirurgião, um quadro branco ou um software educacional para um professor, ou uma broca para um dentista.
Não seriam, portanto, recursos do usuário de TA, servindo diretamente para a atividade e participação desse usuário, mas, sim, ferramentas de trabalho dos profissionais da saúde, utilizados para melhor executarem o seu labor especializado.
Quanto aos aspectos e implicações econômicas dessa classificação, argumenta-se também que os instrumentos de trabalho dos profissionais da saúde, os equipamentos de reabilitação, já estavam situados, organizados e classificados dentro das regulamentações e políticas governamentais, muito antes que se começasse a falar e a pesquisar sobre a área da TA.
Além de que, começando-se a classificar todos esses equipamentos de trabalho da área da saúde, em geral equipamentos caros, também como TA, dos editais, chamadas públicas de projetos e demais políticas públicas de fomento à pesquisa, desenvolvimento e aquisição de recursos de TA, poucos recursos sobrariam para que o usuário final pudesse, de fato, ter acesso aos recursos de TA necessários para a sua atividade, participação, independência e autonomia no dia a dia.
A maior parte desses limitados recursos, argumenta-se, seria direcionada para equiparem hospitais, clínicas, consultórios e centros de reabilitação, e a TA que beneficia o usuário final nas diversas atividades do cotidiano continuaria sem ser apoiada, contemplada e fornecida adequadamente.
Essas polêmicas da atualidade, com suas significativas implicações para os usuários finais, evidenciam a necessidade de que se continue o aprofundamento nas reflexões e na busca de uma crescente clareza conceitual em relação à TA.
A falta dessa maior clareza conceitual tem acarretado, inclusive, distorções, prejuízos, quando não, ações de má fé, que afetam pessoas com deficiência e seus familiares.
Por exemplo, hoje são encontrados no mercado diferentes softwares educacionais que se autointitulam como “Tecnologia Assistiva para o aprendizado”, ou para a alfabetização, de crianças e adolescentes com Síndrome de Down.
Algo estranho, primeiramente porque falar do desenvolvimento cognitivo de pessoas com Síndrome de Down é falar de um horizonte muito amplo, é falar de uma população muito heterogênea, é falar de perspectivas, necessidades e potencialidades muito diferenciadas dentro da mesma população.
O desconhecimento desse fato leva ao risco de que se caia em generalizações ou padronizações simplistas e irreais. Em segundo lugar, também é estranho porque o fato de ter a Síndrome de Down não faz com que essa pessoa possua características de desenvolvimento cognitivo únicas e particulares a sua deficiência.
Ela não tem um cérebro e uma forma de pensar diferente dos outros seres humanos. Sua estrutura mental, sua forma de aprender, é a mesma de qualquer outra pessoa. Considerando-se, também, que não existe uma forma padrão e uniforme, ou uma forma “normal” de pensar, para todos os seres humanos.
Obviamente que não se está negando aqui as limitações intrínsecas à deficiência, mas isso não faz com que essa pessoa possua uma estrutura mental diferente, nem que aprenda a partir de um processo diferenciado em relação a outras pessoas.
Por isso, quando se analisa os conteúdos existentes nesses softwares que se apregoam como “TA específica para o aprendizado de crianças com Síndrome de Down”, invariavelmente se tem encontrado apenas atividades comuns relacionadas ao desenvolvimento da memória, como os joguinhos de memória, ou atividades relacionadas à percepção e discriminação de cores e formas, ou exercícios com números, letras, sílabas e palavras, e outras atividades desse tipo. Ou seja, atividades que nada têm, nem poderiam ter, de específico para o universo da Síndrome de Down.
E, com isso, fica evidente a existência de verdadeiras “jogadas de marketing”, que exploram a frequentemente grande preocupação dos pais de crianças com Síndrome de Down em encontrar alternativas que favoreçam a superação das dificuldades de aprendizado dos seus filhos, aliado, muitas vezes, a crença no mito de que o “poderoso computador” possa oferecer “soluções milagrosas” que anulem, como num passe de mágica, as dificuldades inerentes a todo o processo de aprendizagem.
Além desse tipo de “jogada de marketing”, que também põe em evidência a necessidade de uma maior precisão e clareza conceitual referente às especificidades da TA, um outro tipo de distorção pode ser encontrado com certa frequência na atualidade, e sobre o qual penso ser importante deter-me um pouco e buscar analisar.
Trata-se da identificação equivocada que algumas vezes tem sido feita entre duas áreas de estudo e pesquisa: a área da Informática na Educação Especial (ou as TICs3 na Educação Especial) identificada ou confundida com a área da Tecnologia Assistiva na Educação.
*3 Tecnologias de Informação e Comunicação.
Essa confusão, ou distorção, que ocorre muitas vezes não por má fé, mas, sim, pela necessidade de uma maior clareza conceitual, tem sido encontrada até mesmo em artigos científicos e trabalhos técnicos publicados em anais de eventos na área.
De certa forma, é perfeitamente compreensível que isto ocorra, dado que toda reflexão conceitual sobre a TA é relativamente recente, tratando-se de uma área ainda em pleno processo de organização e sistematização.
Porém, na verdade, a área da Informática na Educação Especial e a área da Tecnologia Assistiva na Educação são duas áreas bem diferentes, com referenciais teóricos diferentes, com objetivos diferentes, e com pesquisadores também muitas vezes diferentes, mesmo que existam pontos de contato entre elas.
É possível encontrar em alguns trabalhos, por exemplo, a identificação e classificação como TA de softwares educacionais comuns, pelo simples fato de que esses softwares estejam sendo utilizados por estudantes com alguma deficiência.
Ou seja, quando um estudante com deficiência está utilizando o computador e um software educacional comum, de português ou matemática talvez, pelo simples fato de tratar-se de um estudante com deficiência, se passa automaticamente a considerar o computador ou o software como um “recurso de Tecnologia Assistiva para o favorecimento do aprendizado desse aluno”.
Note-se a estranheza desse fato, na medida em que, muitas vezes, numa escola inclusiva, ao lado desse estudante com deficiência pode estar outro estudante, este sem deficiência, utilizando o mesmo recurso computacional e, o mais importante, com a mesma finalidade de favorecer o seu aprendizado, exatamente como no caso do estudante com deficiência.
E para esse estudante sem deficiência, obviamente, esse recurso computacional não é considerado como Tecnologia Assistiva, mas, sim, como uma simples tecnologia educacional…
A distorção encontra-se no fato de que, embora ambos os estudantes possam estar utilizando de forma idêntica, e com as mesmas finalidades, o mesmo recurso computacional, para um deles, o estudante com deficiência, esse recurso é identificado com Tecnologia Assistiva, e para o outro, o recurso é classificado como tecnologia educacional.
Não seria, na verdade, para ambos, apenas uma tecnologia educacional, utilizada como recurso e estratégia pedagógica para o aprendizado de ambos, já que em nada se diferenciam na prática as formas e finalidades de uso desse recurso para os dois? Qual a necessidade e o sentido de classificar como TA esse recurso, apenas por estar sendo utilizado por um estudante com deficiência?
3. Uma questão de fundo
Todas essas distorções sobre as concepções e as classificações da TA, encontradas com frequência na atualidade, remetem, na verdade, para uma questão conceitual mais ampla, que seria a seguinte: poderia ter, de fato, a Tecnologia Assistiva uma função específica de promover, ela mesma, diretamente, o aprendizado de estudantes com deficiência, ou seja, de ser uma “Tecnologia Assistiva educacional”? Seria esta uma das funções da Tecnologia Assistiva, ou não?
Note-se que a questão proposta se refere apenas às dificuldades relacionadas às funções cognitivas, ao aprendizado, e não às dificuldades relativas às funções motoras, visuais, auditivas ou de comunicação.
Se a resposta a esta questão for SIM, ou seja, que os estudantes com deficiência de fato necessitam, para aprender, dessa tecnologia específica somente para eles, como a TA, esse raciocínio e conclusão não caminharia na mesma direção do raciocínio e argumentação que defende a necessidade de uma educação e uma escola especial, segregada, já que se admite que os processos de aprendizagem de um estudante com deficiência sejam tão particulares e diferenciados dos demais, que fazem com que necessitem de uma tecnologia tão específica para eles, como a TA, para que consigam aprender, enquanto todos os demais estudantes necessitam “apenas” da tecnologia educacional?
Para a busca de uma maior precisão conceitual sobre a Tecnologia Assistiva, considero fundamental que se leve em consideração todas essas implicações, sociais, filosóficas, econômicas etc., das diferentes concepções de TA, as quais podem encontrar subsídios e referências também em outros âmbitos teóricos e em contextos mais amplos, como buscarei trazer a seguir.
Pesquisas têm revelado que, na verdade, os processos de desenvolvimento cognitivo e aprendizado de qualquer estudante, possua ele uma deficiência ou não, estão relacionados, principalmente, ao tipo de modelo educacional pelo qual se opta, estando, por isso mesmo, relacionados à construção de um novo paradigma que respeite e valorize a diversidade humana, e que responda, individualmente e de forma flexível, às características, necessidades e potencialidades de cada estudante, respeitando os seus ritmos e formas de aprendizagem. E isso, enfatize-se, independentemente deles possuírem ou não uma deficiência, já que:
Vygotsky (1997) chama a atenção para o fato da criança com deficiência não possuir uma estrutura de desenvolvimento e aprendizado diferente das outras crianças:
Dessa forma, e só assim, a escola poderá dar passos concretos para se tornar, verdadeiramente, uma Escola Inclusiva, uma escola aberta e valorizadora da diversidade humana, percebendo e acolhendo as diferenças individuais não como um obstáculo, mas como um potencial de riquezas para o qual ela deve estar atenta, articulando iniciativas e ambientes de aprendizagem que tornem essa diversidade um fator de crescimento e enriquecimento da coletividade.
De outra forma, a partir de um modelo educacional padronizante e massificado, de repasse e memorização de informações, as diferenças continuarão sendo encaradas como “um corpo estranho” no interior da escola (GALVÃO FILHO, 2009b), as quais devem ser alvo de “intervenções especializadas”, de escolas especiais, ou de tecnologias específicas, como uma suposta “Tecnologia Assistiva específica para o aprendizado” de estudantes com deficiência.
Numa linha semelhante às reflexões e críticas ao modelo educacional tradicional que são encontradas nas pesquisas e trabalhos sobre o papel das novas tecnologias aplicadas à educação, encontramos na atualidade as reflexões sobre o que se vem convencionando chamar de “Universal Design for Learning” – UDL, ou “Desenho Universal na Aprendizagem”. Uma abordagem interessante sobre o UDL é encontrada no artigo intitulado “Tecnologia Assistiva e Desenho Universal na Aprendizagem: dois lados da mesma moeda”4 (ROSE et al., 2005).
Este artigo destaca a percepção segundo a qual, para que se alcance um Desenho Universal na Aprendizagem, UDL, é fundamental a busca de uma educação e de uma escola cuja estruturação e organização devem ser pensadas, desde o início, de forma flexível, de maneira que possa dar conta eficientemente da diversidade humana presente nas salas de aula.
Ou seja, que todo o universo educacional escolar, com suas dinâmicas, rotinas, tempos, conteúdos, materiais didáticos etc., sejam flexibilizados e diversificados, de forma a que a escola não somente inclua e respeite a diversidade existente na sociedade humana, mas também valorize essa diversidade como um fator de enriquecimento dessa sociedade. E chama a atenção para a importância das Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC, como favorecedoras dessa flexibilização e desse processo inclusivo:
*4 “Assistive Technology and Universal Design for Learning: Two Sides of the Same Coin”. Disponível em: http://craigcunningham.com/nlu/tie536fall09/Assistive%20Technology%20and%20UDL_TwoSidesoftheCoin.pdf
*6 “Taking an AT perspective, the problem can be considered an individual problem — it is clearly the individual students reading disability that interferes with his or her ability to master the history content and demonstrate knowledge. This view fosters solutions that address the individuals weaknesses — remedial reading classes, special tutoring, and AT, for example. Of these, AT is particularly valuable because it provides independent means for the student to overcome his or her limitations by, for example using a spellchecker or audio version of the history book.”
Este exemplo relativo aos recursos tecnológicos de gravação ou síntese de voz para o acesso ao texto é bastante útil, a meu ver, para que se perceba a diferença entre a utilização de recursos tecnológicos como tecnologia educacional e estratégia pedagógica, para o estudante com dificuldade de leitura por questões referentes à cognição e o aprendizado, diferente do seu uso como Tecnologia Assistiva, para o estudante cego.
Ou seja, o mesmo recurso tecnológico sendo utilizado para finalidades bem diferentes. Perceba-se, portanto, que, o que define e caracteriza um recurso como sendo ou não um recurso de TA, não são apenas as características particulares do recurso (“o que”). Nem, tampouco, apenas as características do usuário (“para quem”). Porém, também, a finalidade para a qual se está utilizando o referido recurso (“para que”).
No caso do estudante cego, a finalidade, o “para que”, refere-se ao uso da tecnologia como recurso de acessibilidade ao texto impresso, inacessível devido ao problema relativo à função visual. Penso, portanto, ser importante ter presentes todas essas três perguntas, na identificação e classificação de um recurso como sendo ou não um recurso de TA: O quê?, Para quem? e, também, Para quê?
Sendo que a Tecnologia Assistiva, por definição, trata de recursos de acessibilidade que se destinam especificamente a pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida (CAT, 2007), penso que identificar estratégias pedagógicas e tecnologias educacionais, que podem ser úteis para diversos alunos e não apenas para alunos com deficiência, como sendo recurso de TA, não favorece o caminho da busca de uma maior precisão conceitual relativa à TA.
Primeiramente porque essa identificação parte da premissa de que estudantes com deficiência necessitam de uma tecnologia específica só para eles, como a TA, para que possam desenvolver suas funções cognitivas, para que possam aprender, enquanto os demais estudantes necessitam somente da tecnologia educacional.
O que, de fato, não ocorre, já que os estudantes com deficiência, intelectual ou outra, na verdade necessitam, da mesma forma que os demais estudantes, de um paradigma educacional aberto e flexível, que lhes disponibilize estratégias pedagógicas e tecnologias educacionais por meio dos quais se respeite e valorize a diversidade humana, e responda às suas necessidade individuais e específicas para o aprendizado.
E, em segundo lugar, essa admissão da existência de uma “TA educacional”, enquanto recurso específico para o desenvolvimento das funções cognitivas de estudantes com deficiência, favorece, a meu ver, a continuidade e o crescimento das diferentes distorções encontradas com frequência nas reflexões e práticas na área da TA na atualidade, como as elencadas anteriormente no presente texto.
Portanto, as soluções para o favorecimento dos processos cognitivos e de aprendizado desses estudantes com deficiência estão relacionadas não a Tecnologia Assistiva, mas, sim, às estratégias pedagógicas a serem estruturadas pela escola e pelos professores, e também estão relacionadas às tecnologias educacionais que auxiliem na estruturação e aplicação dessas estratégias pedagógicas, de maneira a que respondam efetivamente às necessidades e processos específicos de cada estudante, com ou sem deficiência.
Note-se que essas estratégias pedagógicas são, justamente, os instrumentos específicos da atuação profissional dos educadores, são as “ferramentas de trabalho” do professor, juntamente com a tecnologia educacional, e desenvolvidas segundo as necessidades de cada estudante.
– Funções Motoras
– Funções Visuais
– Funções Auditivas
– E/ou Funções de Comunicação.
A partir dessa percepção, portanto, entende-se que a superação, por um estudante na escola, das dificuldades referentes às Funções Cognitivas, mesmo quando comprometidas por uma deficiência, está relacionada às estratégias pedagógicas e à tecnologia educacional para o acesso aos conhecimentos e ao aprendizado, e não à Tecnologia Assistiva.
Esses diferentes desafios, propostas e interrogantes aqui discutidos são apresentados no intuito não de trazer respostas e soluções cabais para os problemas, mas, sim, de ressaltar a necessidade de que seja dada continuidade ao processo de aprofundamento e busca de uma maior precisão conceitual relativa à TA, de forma a que se evite ou se supere as distorções encontradas no caminho, as quais dificultam que os objetivos a serem alcançados por meio da TA sejam atingidos.
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Teófilo Galvão Filho é Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, Especialista em Informática na Educação pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL e Graduado em Engenharia pela Universidade Católica de Pelotas – UCPel. É professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (PPGE/FACED/UFBA), ministrando a disciplina “Educação e Tecnologia Assistiva” e orientando alunos do Programa. É pesquisador do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq “Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais” (GEINE/PPGE/UFBA). Atualmente realiza o Pós-Doutorado na Universidade Federal da Bahia com o apoio da CAPES (Programa Nacional de Pós-Doutorado – PNPD/CAPES) e compõe a equipe do NAPE – Núcleo de Apoio ao Aluno com Necessidades Educacionais Especiais da UFBA. Tem atuado como consultor nas áreas de Tecnologia Assistiva, Educação Inclusiva e Políticas de Inclusão Social. É membro do Comitê de Ajudas Técnicas da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.